Denúncia do Ministério Público Federal contra 19 pessoas revela os detalhes da ação criminosa, encomendada por fazendeiros e executada por empresa de segurança.
A reportagem é de
Verena Glass e publicada pela Agência
Repórter Brasil, 01-12-2012.
O assassinato do cacique guarani kaiowá
Nizio Gomes em 18 de novembro de 2011, no acampamento da retomada do
Tekoha Guaiviry, localizado nos municípios de
Aral Moreira (MS) e
Ponta Porã (MS), no Cone Sul do Estado, foi um crime que chocou o país e teve grande repercussão nacional e internacional. Agora, dez dias antes do aniversário de um ano do assassinato de
Nizio, o processo contra os 19 acusados de planejar e executar o crime deixou de correr em segredo de justiça.
Públicas desde o dia 8 de novembro, as investigações e a conseqüente denúncia do
Ministério Público Federal (
MPF) contam uma história digna de romance policial, com relatos de suborno, acenos ligados à disputa do poder político (promessa de apoio à eleição de um amigo da vítima ao cargo de vereador), planejamento minucioso do crime na calada da noite, delação da amante do dono da empresa envolvida no assassinato, entre outros.
Documentos públicos fundamentados em depoimentos e investigações revelam que a trama que levou à morte de
Nizio começou pouco após a retomada de um pequeno trecho da
Fazenda Nova Aurora pelos kaiowá de Guaiviry, em 1° de novembro de 2011. Vizinhos da área, os réus
Idelfino Maganha (dono das Fazendas Querência, Cachoeirinha e Figueira),
Claudio Adelino Gali (dono das Fazendas Sonho Mágico e Arueira) e
Samuel Peloi (dono da Fazenda Dois Irmãos), além do presidente do sindicato rural e Secretário Municipal de Obras de Aral Moreira (MS),
Osvin Mittanck, e dos advogados
Levi Palma e
Dieter Michael Seyboth (este último, genro do fazendeiro Maganha) começaram a discutir formas para retirar os indígenas da área. Foram aventadas três possibilidades: convencer o grupo a sair mediante o oferecimento de dinheiro; pedir reintegração de posse na Justiça; ou contratar uma empresa de segurança privada armada para promover a expulsão violenta.
Primeiro de tudo, porém, havia a necessidade de sondar o acampamento. Para isso,
Osvin apresentou ao grupo o indígena
Dilo, conhecido do cacique
Nizio Gomes. A missão atribuída a
Dilo foi a de levantar o número de acampados em Guaiviry e verificar se o
Nizio sairia em troca de pagamento.
Dilo foi três vezes ao acampamento, mas o cacique permanecia firme: a terra pertenceu aos seus ancestrais, e lá o grupo ficaria.
Entrementes, os fazendeiros contataram a empresa de segurança
Gaspem (conhecida no Estado por suas ações violentas contra acampamentos indígenas), comandada pelo policial militar aposentado
Aurelino Arce. Com o fracasso das tentativas de suborno, o grupo decidiu, segundo consta na denúncia do
MPF acatada pelo Judiciário, pela contratação dos pistoleiros.
Um dia antes, o advogado
Levi Palma e o dono da
Gaspem teriam acertado os detalhes da ação.
Aurelino Arce acionara, então, seus homens - os réus
Josivam Vieira de Oliveira (vigilante),
Jerri Adriano Pereira Benites (aposentado),
Wesley Alves Jardim (ajudante de pedreiro),
Juarez Rocanski (vendedor ambulante),
Edimar Alves dos Reis (vigilante),
Nilson da Silva Braga (vigilante),
Ricardo Alessandro Severino do Nascimento (vigilante e gerente da Gaspem),
André Pereira dos Santos (vigilante),
Robson Neres do Araújo, Marcelo Benitez e
Eugenio Benito Penzo -, enquanto
Levi cuidou da logística e reuniu, junto aos fazendeiros locais, as armas para o ataque.
Por volta das 22h do dia 17, o grupo de
Aurelino chegou à Fazenda Maranata, onde foi recebido pelo fazendeiro
Samuel Peloi, que lhes ofereceu um jantar. Após a refeição, já na madrugada do dia 18,
Cláudio Adelino Gali, Aparecido Sanches (seu braço direito e capataz em sua fazenda),
Samuel Peloi, Levi Palma e os 12 integrantes da Gaspem fecharam os detalhes do ataque. Conforme testemunhas, os fazendeiros repassaram as armas de fogo (ao menos seis, do tipo calibre 12). Decidiu-se o horário da ação e a logística de carros.
O ataqueO ataque ao acampamento foi perpetrado pelos jagunços
Josivan, Jerri Adriano, Wesley, Juarez, Edimar, Nilson, Ricardo Alessandro, Robson e
Marcelo Benitez, de acordo com as investigações que sustentam a denúncia.
Ao chegarem na trilha que dá acesso ao interior do acampamento de Guaviry, os homens da
Gaspem abordaram aos gritos o cacique
Nízio Gomes que, assustado, reagiu e acertou o pé direito de
Josivan com uma machadinha. Neste momento, começa o tiroteio. Com um tiro sub-axilar,
Jerri Adriano mata
Nizio. Seu neto,
Jhonaton Gomes, de 15 anos, apesar de também ferido, tenta carregar o corpo do avô, mas quando vê os pistoleiros se aproximarem, foge para o mato. Segundo testemunhas,
Jerri vai até a vítima, chuta sua cabeça e diz: "esses índios mesmo mortos ainda nos dão trabalho".
A seguir,
Robson, Juarez, Edimar, Jerri e
Wesley carregam o corpo para fora da mata e colocam-no em uma das duas caminhonetes S-10 que foram utilizadas para acompanhar e dar suporte à ação. O veículo que transportou o corpo do indígena foi conduzido por
Aparecido Sanches (funcionário do fazendeiro
Cláudio Gali), que estava com outras duas pessoas (ainda não identificadas).
Após desaparecer com o corpo de
Nizio, o consórcio de fazendeiros montou uma estratégia para dificultar as investigações. Dois dias depois do crime,
Osvin Mittanck, Samuel Peloi e
Idelfino Maganha se reuniram com o índio
Dilo na sede do Sindicato Rural de Aral Moreira. Em troca de dinheiro, pagamento de advogado e apoio à sua candidatura a vereador nas eleições de 2012,
Dilo deveria dizer à Polícia Federal (PF) que
Nizio estava vivo, escondido em uma aldeia no Paraguai. Pelas mentiras à
PF, Dilo recebeu cerca de R$ 2,3 mil dos fazendeiros, apurou a investigação; e concluiu: "o grupo de fazendeiros não poupou esforços para corromper a citada testemunha".
Confirmação da morteA farsa montada pelos mandantes do assassinato de
Nizio não durou muito. Uma das testemunhas-chave no processo foi
Tatiane Michele da Silva, de 20 anos. Amante do dono da
Gaspem, Aurelino Arce,
Tatiane disse à PF que presenciou o momento em que
Josivan, Juarez, Jerri e
Wesley informaram a
Aurelino que teriam matado um indígena durante a ação, e que o corpo já estava longe.
Depois das infrutíferas buscas por
Nizio no Paraguai,
Dilo acabou confessando o esquema de mentiras, tornando-se outra testemunha-chave do processo. Por outro lado, de acordo com a perícia, análises de sangue coletado no local do crime não deixaram dúvidas de que
Nizio foi baleado e morto. "A despeito da não localização do corpo ou dos restos mortais, a prova técnica e testemunhal produzidas nestes autos retratam uma miríade de provas e indícios que permitem concluir pela materialidade do delito de homicídio qualificado ora denunciado", sustentou a investigação.
Segundo o
MPF, dos 19 acusados -
Claudio Adelino Gali (fazendeiro),
Levi Palma (advogado),
Aparecido Sanches (tratorista, homem de confiança de Cláudio Gali e capataz de sua propriedade rural Sonho Mágico),
Samuel Peloi (fazendeiro),
Idelfino Maganha (fazendeiro),
Dieter Michael Seyboth (advogado e genro de Idelfino Maganha),
Osvin Mittanck (presidente do Sindicato Rural e Secretário de Obras de Aral Moreira/MS),
Aurelino Arce (PM aposentado, proprietário da Gaspem Segurança Ltda),
Josivam Vieira de Oliveira (vigilante, agente executor),
Jerri Adriano Pereira Benites (aposentado, agente executor),
Wesley Alves Jardim (ajudante de pedreiro, agente executor),
Juarez Rocanski (vendedor ambulante, agente executor),
Edimar Alves dos Reis (vigilante, agente executor),
Nilson da Silva Braga(vigilante, agente executor),
Ricardo Alessandro Severino do Nascimento (vigilante, gerente da Gaspem Segurança),
André Pereira dos Santos (vigilante, executor),
Robson Neres do Araújo, agente executor,
Marcelo Benitez, agente executor, e
Eugenio Benito Penzo, motorista -, três responderiam pelo homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo e corrupção de testemunha; quatro, por homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver e porte ilegal de arma de fogo; e 12, por homicídio qualificado, lesão corporal, formação de quadrilha ou bando armado, e porte ilegal de arma de fogo.
O caso corre agora na Justiça Federal de
Ponta Porã (processo 0001927-86.2012.4.03.6005). Já durante o inquérito, a PF havia pedido a prisão preventiva de 18 investigados, dos quais sete continuam detidos. Os acusados foram citados para que apresentem suas respectivas defesas.
Demarcação é reivindicação antigaA área indígena
Guaiviry vem sendo reivindicada pelos Guarani-kaiowá desde 2004. De acordo com as lideranças, a área teria sido demarcada como indígena ainda no século XIX, mas na década de 1910, com a criação da
Terra Indígena Amambaí pelo Serviço de Proteção ao Índio (
SPI), a população de Guaiviry foi transferida para lá e a área anteriormente ocupada, considerada terra devoluta. Segundo o MPF, “a demarcação da terra indígena
Guaiviry é conhecido pleito dos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul.
Foi objeto, inclusive, de Termo de Ajustamento de Conduta –
TAC celebrado entre o Ministério Público Federal e a Funai em 12/11/2007, a fim de que a autarquia indigenista enfim promovesse os tão aguardados estudos de identificação e delimitação pertinentes, nos termos da legislação em vigor. Importante ressaltar que o indígena
Nízio Gomes figurou como testemunha daquele instrumento jurídico, evidenciando sua importância na luta pelo reconhecimento das terras tradicionais da comunidade
Guaiviry”. Até o momento, o estudo da área pela Fundação Nacional do Índio (
Funai), ligada ao Ministério da Justiça (MJ), não foi finalizado.